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terça-feira, 14 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27315: P27259: Notas de leitura (1851): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte III: de Leiria a Coimbra, e da Carregueira a Penafiel, a caminho do CTIG (Luís Graça)



Crachá da 2ª C/BART 6521/72 (Có, 1972/74)


Luís da Cruz Ferreira (n. 1950, Benedita, Alcobaça)


1. Continuando a leitura do livro do Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025, il., 184 pp,) 
(ISBN 978-989 -33.7982-0) (*).

Oriundo co contingente geral, vamos encontrá-lo na recruta, no RI 7, Leiria, 4º turno de 1971 (out/dez 1971).

Fará depois a especialidade de auxilitar de enfermeiro, em Coimbra, no RSS (Regimento de Serviços de Saúde) (jan/mai 1972)

Irá de seguida  formar batalhão, o BART 6521/72, no RAL 5,  Penafiel (jun / set 1972). 

Daí partirá, de autocarro, em 22 de setembro de 1972, de noite, para o aeroporto militar de Figo Maduro,em Lisboa.  Embarcará num Boeing 707 para Bissau, onde chega no dia 26/9/1972 (uma pequena divergència quanto à data de chegada ao CTIG).

O exército levava quase um ano a formar um militar que depois seguia para o ultramar (Angola, Guiné ou Moçambique), em rendição individual, ou integrado num contingente. 

As suas observações críticas  (mesmo que "anedóticas"...) sobre o quotidiano da tropa naquela época merecem, só por si, uma nota de leitura à parte. O livro foi destinado, antes de mais, aos camaradas da sua subunidade,  tendo sido publicado (a 1ª edição) para comemorar, em 2/8/2024,  os 50 anos do regresso da 2ª C/BART 6521/72 (Có, 1972/74).

Com 11 anos de guerra, em Angola e 9 na Guiné e em Moçambique, o serviço militar obrigatório era vista, pelos jovens portugueses de então, como um tempo completamente perdido das suas vidas, que se podia prolongar por 3 ou mais anos. Muitos desses jovens já tinham saído das suas famílias, trabalhando ou continuando a estudar fora das suas terras.

A qualidade da instrução militar (recruta e especialidade) ressentia-se da necessidade, sobretudo do Exército, em mobilizar e preparar rapidamente dezenas de milhares de jovens para um conflito de longa duração, a milhares de quilómetros de casa e  de baixa popularidade. Técnica, tática, física e culturalmente, os militares portugueses iam mal preparados para  uma guerra dita de contra-guerrilha (ou "contra-subversão"), num terreno difícil, de clima tropical.



Capa do livro 


2.  Luís da Cruz Ferreira é natural da Benedita, Alcobaça. Nasceu em 2 de março de 1950, mas só  foi registado  seis meses depois, em 4 de outubro. 

De alcunha o "Beatle", quando jovem, profissionalmente já estava ligado à restauração, tendo trabalhado em diversos estabelecimentos conhecidos da Linha, e nomeadamente em Cascais, a começar pelo famoso  Muchaxo (Guincho).

Na tropa e na guerra, foi 1º cabo aux enf, tendo sido mobilizado para o CTIG, integrado na 2ª C /BART 6521/72 (Có 1972/74). O batalhão estava sediado no Pelundo. Também foram dos últimos soldados do Império, tendo regressado a casa já em finais de  agosto de 1974. 

Antes da suas relativamente tranquilas  "peripécias" da Guiné (onde acabará pro ser sobretudo professor do Posto Escolar Militar nº 20, em Có), vamo ver o que ele nos conta sobre o seu tempo de recruta e instrução de especialidade, bem como de formação de batalhão. (Em Bolama, o batalhão haveria ainda de fazer, durante mais de um mês, a sua IAO -  Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, antes de ser colocado na zona oeste,  Sector 07, com sede em Pelundo e abrangendo os subsectores de Có, Jolmete e Pelundo.)

Comecemos pela distribuição do fardamento no RI 7, em Leiria;
 

Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025), pág. 9.


Num quartel gigantesco (que albergaria, segundo autor,  c. 1500 homens, um regimento), ficou aboletado  numa caserna para 30 recrutas, com camas duplas, em beliche. Tocou-lhe o 1º andar. Tinha direito a um cacifo com o respetivo cadeado. 

Em Leiria, um quarto dos recrutas do contingente geral eram cooptados para o CSM (Curso de Sargentos Milicianos). Com três disciplinas que lhe faltavam para acabar o 5º ano do liceu,  o jovem recruta, com 21 anos e 6 meses de idade (ou só 21 anos, segundo o registo civil), tinha algumas esperanças de ser um dos "eleitos"... Não o foi, alegadamente por não ter nenhuma "cunha",  revoltou-se mas depressa se resignou, a viver naquele espaço "onde tudo quanto mexia, (...) era de cor verde" (pág. 11).

Visto por um "extraterrestre", aquele era um espaço de segregação, destinado apenas a homens,  "onde não havia mulheres" (pág. 11), e onde esses homens,  com postos hierárquicos bem diferenciados, tinham de se saudar uns aos outros, quando se cruzavam:



Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025), pág. 11


Lembra os instrutores (cabos milicianos, furriéis, aspirantes...) que o tratavam com uma inesperada e desnecessária "rudeza". A instrução era dada "em passo de corrida". E havia a ideia de que um homem só era homem depois de ter ido à tropa, e de ter suportado, ci,m sucesso,  muitas privações, contrariedades, humilhações, afinal "demonstrações de coragem, destemor e capacidade  de sofrimento, além de muitas outras coisas inúteis" (pág. 11).



Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (ediçáo de autor, 2025), pág. 12


Havia "palestras" ou aulas ao ar livre. Mas o mais importante era o "exercício prático", com a omnipresente companhia da inseparável G3. Recorda a "ida à carreiro de tiro de Marrazes", onde cada recruta fez tiro a 100 metros, em várias posições, gastando cada um carregador de 20 balas... 

Equipara o RI 7 a uma "prisão", onde escasseavam os apoios sociais..Com tanta gente, beber um café na cantina, foi coisa que nunca conseguiu, e que muita falta lhe fazia. Estava habituado, na vida civil, a tomar, depois do almoço e do jantar, o seu "Tofa 404 e, mais tarde, o 505 embalado em vácuo" (pág, 13). Tal como era difícil comprar cigarros. Ir à cidade eram 2 km.  Com o tempo ameno, nesse outono de 1971,  ainda chegou a lá ir e ver nas esplanadas algumas meninas da sua terra, Benedita, Alcobaça, que estavam a tirar o curso do magistério primário. Capital de distrito, Leiria também tinha liceu.

Relembra ainda a semana de campo nas "matas de São Pedro de Moel" e "a tenda de quatro panos" que  ele e mais 3 recrutas montaram.  Passou o tempo doente, de amigdalite, na tenda, e de tal maneira que passou a odiar o campismo para o resto da vida.

Depois do juramento de bandeira, na parada do quartel, ficou a saber que lhe tinha calhado em sorte ir para Coimbra "tirar a especialidade de enfermeiro" (pág, 17).

De Coimbra, onde o colchão já era de espuma (em Leiria era de palha...), não guarda boas recordações da tropa, e muito menos do "rancho": tratavam os futuros enfermeiros "como presidiários com algumas precárias pelo meio para lavarmos a roupa que tínhamos bem suja à custa de nos fazerem ajoelhar, chafurdando nas terras enlameadas" (pág. 21).

Os transportes na época eram um pesadelo. Eram escassos, morosos e caros. Pouca gente ainda tinha carro. Aprendeu a andar à boleia, na estrada nacional nº 1. O célebre restaurante "O Bigodes", aberto 24 horas por dia, era paragem obrigatória, quer de camionistas quer dos militares que andavam à boleia. (Ainda hoje existe, IC2 / N 1 Km 81, 2475-034 Benedita),.

Um dia apanhou boleia até à Figueira da Foz, onde chegou às cinco da manhã. O comboio para Coimbra era só às sete. Com medo de chegar tarde à formatura, teve de ir de táxi, viagem que lhe custou uma pequena fortuna, 150 $00, o equivalente a 10 jantares (ou a 42 euros, a preços de hoje).

Comia-se tão mal no quartel, que era um antigo convento (e depois instalaçpes do RI 12 e, a oartir de 1965, do Regtimento do), que o Luís e um colega decidiram fazer, mesmo sem estarem desarranchados, as suas refeições por conta própria.

Quanto ao que aprendeu em Coimbra, 
entre janeiro e maio de 1972, foi muito pouco. E também ali não se falava do "conflito do ultramar"...



Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025), pág. 25


Passou ainda pelo Hospital Militar Principal (HMP) na Estrela, em Lisboa, e pelo quartel da Carregueira. Ainda conseguiu fazer mais um disciplina do 5º ano, o inglês, faltando-lhe agora duas: fisico-químicas e matemática.

É pena que, passado mais de meio século, sobre o seu tempo de instrução de especialidade, em Coimbre e depois no HMP, à Estrela, haja poucas referências ao que ali aprendeu. Diz-nos apenas que foi pura perda de tempo. Mesmo assim, da sua passagem pelo "serviço de cirurgia plástica" do HMP, diz-nos que "através de observação, aprendi alguma coisa, não muito" (pag. 27).

Sabemos que o curso de especialidade para 1º cabo auxiliar de enfermeiro,   ministrado apenas em Coimbra, no Regimento do Serviço de Saúde (criado em 1965, poara responder às necessidades de pessoal sanitário nos 3 teatros de operaçóes. Os futuros furriéis enfermeiros, esses, tiravam a especialidade em Lisboa, no antigo quartel de Campo de Ourique,  onde  funciona a Escola do Serviço de Saúde Militar, a ESSM). 

O conteúdo era sobretudo prático,  devendo compreer matérias como: (i) noções básicas de anatomia e fisiologia; (ii) higiene e profilaxia de doenças tropicais (paludismo, disenterias, infecções cutâneas); (iiii) técnicas de enfermagem geral (curativos, injeções, soros, etc.); (iv) socorrismo em combate (estancar hemorragias, imobilizações, transporte de feridos, reanimação); (v) administração de medicamentos de rotina (quinino, cloroquina, antibióticos comuns); (vi) evacuação sanitária e triagem.

Portanto, o Luís deve ter recebido uma formação intermédia entre o socorrista civil e o enfermeiro profissional, com forte ênfase na autonomia e na  improvisação em condições adversas (recorde-se  que, na Guiné, tanto o furriel enfermeiro como o alferes médico, ambos milicianos, raramente saíam para o mato, sendo cada vez afetos, no tempo do gen António Spínola, aos serviços de saúde da província, prestando cuidados primários (e secundários) não só aos militares como à população civil.) (Os casos mais graves careciam de evacuação para o HM 241, em Bissau.)




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu >  Nova Lamego > 1973 > CCS/ BART 6523 (Nova Lamego, 1973/1974)  > O 1.º cabo aux enf Alfredo Dinis, a "tratar de graves queimaduras do Filipe, resultantes da explosão de um gerador de energia, no quartel".

Foto do álbum de Alfredo Dinis (já falecido) – P6060, com a devida vénia. Ver, também, "Memórias de Gabú (José Saúde): Recordando o saudoso enfermeiro Dinis" – P14106.


E entramos na reta final, que foi o RAL 5, em Penafiel, distrito do Porto, onde se foi juntar ao BART 6521/72, que estava em formação. De Penafiel até tem boas recordações, mas não dos transportes para lá se chegar na época. Eram 3 enfermeiros que sairam da Carregueira com destino  a Penafiel:

(i) "por  volta das 11 horas meteram-nos numa camioneta de carga que era utilizada para fazer a ligação  entre o quartel e a estação do Cacém e lá nos largaram" (pág. 34);

(ii) em Braço de Prata, informaram-nos que tinham um comboio-correio para o Porto às 15h00, mas parava em todas as estações e apeadeiros;

(iii) chegaram ao Porto, Campanhã, seis horas e meia depois, às 21h3o;
 
(iv) foram dar um giro pelos arredores e "comer um bom bife com batas fritas a um preço acessível", mas acabando por perder o comboio da meia-noite;

(v) apanharam o das 2h00, chegaram a Penafiel às 3h00;

(vi) extremamente cansados, pousaram os sacos no chão, a servir de almofada,  e assim se ajeitaram para retemperar as forças, só despertando ao toque do corneteiro a anunciar a alvorada.

A manhã começaria com a azáfama própria de um quartel de mobilização de tropas para o ultramar. Nesse mesmo dia conheceu o seu futuro comandante, um jovem capitão miliciano, bem como o alferes, também miliciano, do seu pelotão.  Ficou então a saber que "pertencia ao 2º pelotão da 2ª companhia do Batalhão de Artilharia nº 6521" (pág. 38) (**).

(Continua)

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sábado, 11 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho



Marco de Canaveses > circa anos 40 do séc. XX  > O típico carro de bois de Entre Douro e Minho...O boi com a sua "molhelha",,, A mulher, com o seu lenço de cabeça, escondendo o cabelo, ela e o seu "home", cada um no seu lugar... Ela a tanger os bois...Ele de chapéu e varapau...

(Molhela: almofada, geralmente composta de couro, palha e estopa, onde assenta a canga que junge os bois,e que é  colocada no cachaço, protegendo-o do atrito da canga).


Marco de Canaveses > circa anos 40 do séc. XX  >  A vinha de enforcado, a vindima (com recurso a escadas altas), os grandes cestos de verga à cabeça, as mulheres e os seus "cantaréus" (canções de trabalho, cantadas a 3 vozes, exclusivamente femininas, nas "serviçadas", como a vindima, as desfolhadas, etc.)

Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).



Quinta de Candoz > A matança do porco (c. 1975/80): uma cena que Bruxelas conseguiu banir definitivamente dos nossos campos e aldeias (mas não da nossa memória) em nome de uma conceção ( fundamentalista, dizem os críticos) da saúde pública e de uma Europa securitária, globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade... 

Declaração de interesses: Não sou "vegan", adoro carne de porco, adoro leitao... Claro que eu hoje não queria ver as minhas netas a assistir a uma cena "cruel" como esta (hoje fala-se em "bem-estar" animal)... Na nossa infância tivemos que "ver e ouvir" os gritos lancinantes do pobre animal, mas a seguir comíamos-lhe o sarrabulho, os rojões, as "febras", as bochechas, o presunto, os salpicões, os chouriços... E jogávamos á bola com a bexiga do porquinho!)



Marco de Canaveses > c. 1975/80>   O "toirinho" (sic), vendido na feira do Marco, uma das poucas fontes de receita dos "caseiros" (ou "rendeiros", tínhamos um em Candoz, nessa altura), para além do vinho e do milho... Este era um
 boi de trabalho, não de engorda; a junta de bois puxava a charrua de ferro, e trazia do "monte" uma carrada de lenha. Por sua vez, o porco era o governinho da patroa (que o guardava, com engenho e arte,  na "salgadeira" ou no "fumeiro"). 




Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > O que resta do velho carros de bois...Foi caindo aos pedaços, já com uma bela idade...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Comecei a ir a Candoz há 50 anos, em 1975... Freguesia de Paredes de Viadores, concelho de Marco de Canaveses, na bacia hidrográfica do rio Douro e do rio Tâmega;  a sul , em frente, ficava/fica a serra de Montemuro, já no distrito de Viseu. 

1975,  em "pleno verão quente", um ano depois do 25 de Abril.  Fui fazer, eu e a Alice, uma viagem pelo "Portugal profundo", "sacro-profano",  que eu não conhecia. Ela sim, tinha começado a trabalhar na instalação do Parque Nacional da Peneda-Gerês. E era nada e criada naquelas terras, donde já se avista o Marão. 

Foi então que descobri a  região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado" deste País, a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos a água), as histórias do linho e das desfolhadas, as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima ou abaixo", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de produção) , as feiras de gado, as romarias, as tunas rurais, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta) no lagar... Uma tarefa que só podia ser feita pelos homens porque não eram,,, "menstruados".

Casar-nos-íamos, lá, em Candoz, um ano depois. Pelo civil. O primeiro casamento civil do ano, no Marco de Canaveses, segundo nos disse o ajudante de registo civil que foi lá a casa.  Uma heresia, numa família católica e conservadora.

 A 7 de agosto de 1976. Ganhei uma nova família. Fiquei mais rico tendo optado pela exogamia (a lei que manda nunca casar na tua terra...).

As formas de estar, viver, trabalhar, pensar, educar, amar, morrer... até aos anos 60 ainda estavam  ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e em grande parte de autossubsistência... 

Ainda apanhei a tradição e a transição, a mudança, as pequenas mudanças operadas naquelas terras do Norte de Portugal...Em meio século, assisti a muitas mudanças, pequenas e grandes. Naquele microcosmo  (socioantropológico...), no coração de Entre-Douro-e-Minho, aonde dantes ia meia dúzia de vezes por ano (e agora um pouco menos)... E quando digo dantes, ainda era no tempo em que não havia autoestradas (!), e a viagem de Lisboa até lá (400 km), demorava um dia...

Hoje são uma série delas (se eu partir de Alfragide): CRIL A8, A17, A1,CREP, A4... Recorde-se que a autoestrada A1 só ficou completamente concluída em 1991, ligando Lisboa ao Porto. Já a autoestrada A4, que liga o Porto a Amarante, foi concluída em 1995...

2. Aqui vão, por ordem alfabética, sem  qualquer ordem de precedência, importância,  relevância ou cronologia, algumas das 50 (ou mais) pequenas grandes mudanças ali operadas (refiro-me, no essencial, à freguesia de Paredes de Viadores, onde se situa a Quinta de Candoz,  e onde as pessoas precisavam de berrar ou falar alto para comunicarem umas com os outros, porque o povoamento era e é disperso).

***

  • a Água de consortes, as "levadas" (como a água de Covas, que vinha da serra, e de que o meu sogro tinha direito a utilizar, só no solstício do inverno, uma vez por semana, das 10h da manhã às 6h00 da tarde); a construção civil, a abertura de estradões, a abertura de poços e minas, as alterações climáticas, etc.,  levaram... a "levada", a água de Covas, que chegava a Candoz e continuava pela encosta abaixo: era uma alegria para os sentidos, a vista, o ouvido, etc., assistir à rega do milho;
  • o Anho assado com arroz de forno, que hoje é produto... "gourmet" (e tem confraria);
  •  Bacalhau “lascudo” (que ainda não havia no Natal, nem o bacalhau era a pataco, como a República prometia em 1910)
  • o “Baile mandado” com “mandador” e os homens e as mulheres separados, de pé, encostados às paredes da casa; e dançavam-se as danças palacianas e burguesas do passado; a valsa, a mazurca, a contradança, o fado; e o mandador era também o "coreógrafo";
  • cozia-se a Broa de milho e centeio (três partes de milho e uma de centeio), no forno a lenha, e que tinha de durar 8 dias (ou até 15, "duro que nem cornos"!);
  • o Caciquismo político e eleitoral (do regedor, do padre, do comerciante, do professor, do “fidalgo"...);
  • só os homens usavam Calças (!) (e as raparigas, Tranças, que cortavam quando ficavam "comprometidas" ou iam para o Porto estudar, um privilégio);
  • a Canalha, a miudagem,  uma  Cama para três (e às vezes era no Palheiro, o quarto dos rapazes);
  • ouvia-se o Carro de bois a chiar, "com toda a cagança",  pelos estradões (uma verdadeira sinfonia!); 
  • o osso com Carne ("ó pai, chuche e dê  -mo!") no Moado  (caldo);
  • as Cebolinhas do "talho" (de talhão, da horta, provenientes da monda do cebolal...), o Presunto Verde, o Salpicão,  o Verde,  o Arroz de Cabidela, as Papas de Farinha de Pau, a "Aletria", o "Doce da Teixeira", a Regueifa, e outros pequenos manjares da culinária local
  • os grandes Cestos de vime de 50 kg de uva que os “homes” transportavam aos ombros (e as mulheres à cabeça), por leiras e socalcos abaixo (ou acima) até ao “lagar do vinho” (em geral, no piso térreo, da casa, e com chão saibroso por causa da temperatura ambiente: a "loja" onde também ficava a "salgadeira"); 
  • o Compasso Pascal, a Festa de Nra. do Socorro, a Festa do Castelinho (gente de folgar e trabalhar, ou trabalhar muito e folgar pouco);
  • não se conhecia a Contraceção nem o Planeamento familiar (mesmo a “Pílula” chegaria tarde à cidade…) ("porra e lenha é quanto a venha", um provérbio que pode ter uma conotação sexual, mas não tenho a certeza);
  • a Cultura do milho de regadio, exigente em água e mão de obra (escondia-se o milho nas “minas”, as nascentes de água, para escapar à requisição do governo nos anos da II Guerra Mundial e do pós-guerra);
  • as Crianças habituavam-se, cedo, às “Sopas de cavalo cansado” e eram “Sedadas com Bagaço” quando se contorciam com dores, tinham fome ou estavam doentes;
  • andava-se Descalço (ou, tal como em África, se levava os sapatos na mão até à entrada da vila, da escola, da igreja…);
  • a autossuficiência da Economia do pequeno campesinato familiar onde o pai era “pai e patrão” e a “ranchada de filhos” era garantia de mão-de-obra abundante e gratuita;
  • a Electricidade, o Frigorífico a Televisão, etc., só chegariam depois do 25 de Abril (mesmo com a barragem do Carrapatelo a escassos quilómetros de Candoz);
  • Emigração, primeiro para o Brasil (até aos anos 50) e depois para França ( "a salto") e Alemanha, também depois Luxemburgo e Suiça;
  • não havia  Estradões ( e foi com essa promessa de abrir estradões que caciques como o Ferreira Torres ganhavam eleições);
  • a “Esterqueira” (ao pé da porta onde se faziam todos os despejos domésticos e se deitava todo o lixo orgânico que não fosse para a “gamela” de, "com a sua licença", o porco) (já não é do meu tempo, mas da infância da Alice; aliás, da minha infância quando ia casa dos meus tios no Nadrupe, á Quinta do Bolardo,  á casa dos meus parentes do clã Maçarico, em Ribamar);
  •  não havia  Estradões ( e foi com  a promessa de abrir estradões que caciques como o Ferreira Torres ganhavam eleições) ("roubava, mas fazia obra", dizia o povo...);
  • a Estratificação social nos campos: ”fidalgos”, pequenos proprietários, rendeiros…e cabaneiros (gente sem terra nem casa) (e que na igreja também se dispunham pela mesma ordem, com homens e mulheres, socioespacialmente separados);
  • as Feiras anuais e sobretudo as feiras de gado (onde se levava o porquinho e o tourinho para vender, ou onde se ia comprar uma "junta de bois") (era lá que também se fazia, além de negócios, namoros, casamentos, alianças; tal como a igreja, a feira era um importante local de socialização):
  •  a importância das Feiras e romarias como factor de lazer, de socialização, de negócios, de informação, conhecimento e propaganda (ah!, os pregões dos feirantes!);
  • batia-se  forte e feio nos Filhos (em casa e no campo) e nas crianças (na escola) ("quem dá o pão, dá a educação");
  • em que os mais remediados diziam: “criei-os [aos Filhos] fartos e cheios [de pão, que não se escondia na “trave” do telhado de telha vã, fora do alcance dos ratos e… das crianças, isso era sinal de pobreza];
  • o Fumeiro e o Barro vidrado que tanto cancro no estômago provocou;
  • a criação, em cortes, do  Gado bovino (o “tourinho”, mais bem tratado que a “canalha”, a miudagem,  porque rendia dinheiro ao ser vendido na grande feira do Marco de Canaveses);
  • só os Homens usavam calças (!) (e as raparigas cortavam as tranças quando ficavam comprometidas ou iam estudar para o Porto, um privilégio, nos anos 60);
  •  as Juntas de bois lavrando a terra com arados de ferro;
  • só se bebia Leite (de cabra, de vaca era mais raro) quando se estava doente (em geral os adultos);
  •  as Longas caminhadas a pé (para se ir à missa, à romaria, à feira, à repartição de finanças na sede do concelho, mas também ao médico e o hospital da misericórdia... a 13/15 km de distância);
  •  a Luz do candeeiro a petróleo ou querosene;
  • o valor comercial da Madeira de carvalho, castanho, pinho, cerejeira, etc. (madeira nobre hoje destronada pelo eucalipto);
  • a Matança do porco, o fumeiro e a salgadeira (que eram o “governinho da tia Aninhas”, e também uma das principais causas de morbimortalidade por doenças cérebro-vasculares, como a “trombose”):
  • o Médico da vila  ("João Semana") que só se chamava a casa na hora da morte para passar a certidão de óbito;
  • o Medo das trovoadas, das bruxas, dos lobisomens, do mau olhado, das pragas que se rogavam uns aos outros por ódio, vingança,  inveja, intrigas, desamores, etc.; 
  • a escassez de Meios de tração mecânica na lavoura (tratores, motocultivadores, serras mecânicas, etc.) e de transporte automóvel (não me lembro de haver nenhum trator em 1975...);
  • cultivava-se o Milho, o  Centeio... e o Linho (!);
  • a fraca Monetarização da economia (fazia-se algum dinheiro com a venda das uvas, do milho, do tourinho, da cereja e pouco mais; ou trabalhando à jorna, ocasionalmente para o "ramadeiro", para o "construtor civil, etc., que os mais sortudos iam para a polícia e os caminhos de ferro, a CP);
  • os "Montes” (pinhais) que eram “rapados” todos os anos, não só para limpeza e prevenção dos incêndios (não havia incêndios) como sobretudo por causa da importância que tinha o mato para fazer a "cama dos animais” e depois o estrume (fundamental para a cultura do milho ou da batata); 
  • "na casa desta Mulher come-se tudo o que ela der";
  • as grandes Mulheres (ou "Mulheres Grandes") que em geral se escondem(iam) atrás dos seus “homes" (e tinham sempre uma palavra de peso, a última, nos negócios, nas compras de propriedade, nos amores, nos casórios dos filhos, etc.);
  • o Obscurantismo não só político e cultural mas também religioso (como o daquele pároco que mandou cortar as pilinhas dos anjinhos na igreja);
  • a "minha Palavra vale mais do que a minha terra toda" (a palavra dada era lei);
  • as Panelas de ferro, ao lume, na lareira (onde se faziam os "Rojões");
  • as “Parteiras” (que não as havia, diplomadas) eram as “aparadeiras” (sic) (mulheres curiosas, mais velhas, que já tinham sido mães...);
  • jogava-se ao Pião (os rapazes) e  brincava-se às Bonecas de trapos (as raparigas);
  • ó Maria, dá-me o Pito...E Porra e Lenha é quanto a venha (a maneira brejeira, pícara, desta gente do... carago!);
  • as Professoras do ensino primário que se chamavam "regentes escolares"; 
  • fatalismo dos Provérbios populares (“boda e mortalha no céu se talha”, "muita saúde e pouca vida que Deus não dá tudo"...); 
  • as Ramadas e o Ramadeiro (construtor de ramadas);
  • a luta dos Rendeiros, a seguir ao 25 de Abril, contra a parceria agrícola e pecuária, formas pré-capitalistas de exploração da terra, com o pagamento das “rendas” em géneros  (em geral, numa proporção fixa, por exemplo ao terço, a meias, etc.);
  • os Salamaleques da “servidão da gleba”: “com a sua licença, meu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”, desbarretando-se a 10 metros de distância, num  concelho onde em 1958 mais de metade dos agricultores eram rendeiros;
  • a Salgadeira (onde se guardava o porco, desmanchado) (responsável por muitos AVC);
  • os Salpicões feitos em vinho verde tinto (fundamental na cozinha e nos enchidos, este vinho único no mundo);
  • não havia Saneamento básico, água potável (a não ser o das minas) nem banheiro com duche;
  • a Sardinha “para três” (que chegava de Matosinhos na Linha do Douro até  a estação do Juncal, e depois era transportada à canastra e vendida de porta em porta) (... e os ovos que se vendiam para comprar a "sardinha para três");
  • o Sável e a Lampreia do rio Douro (que as barragens "mataram") (comia-se o sável pela Quaresma,  quando a Igreja proibia o consumo de carne... aos pobres);
  •  as "Serviçadas” como a vindima, a malha do centeio, a desfolhada do milho, a espadelada do linho, a matança do porco, etc., em que os familiares e os vizinhos se ajudavam, uns aos outros;
  • "Ir às Sortes" (à junta médica militar, e ficar apto ou apto para a tropa); (era também um a "ritual de passagem para os "machos", e o início do "home leaving"; quando se regressava, é para para o jovem adulto a começar a governar a sua vida, deixar a casa dos pais, ir para o Porto trabalhar na África, ou para o Brasil, e mais tarde para França, Luxemburgo, Suiça...na construção civil;
  • "na casa deste home quem não Trabalha não come";
  • começava.se a Trabalhar muito cedo (“ o trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco”; "na casa deste home, quem não trabalha não come; e na casa desta mulher, come-se tudo o que ela fizer"):
  •  as “Tunas rurais do Marão” (indispensáveis nos "bailes mandados") (uma rabeca, um violão, uma viola, um cavaquinho, unas ferrinhos, uma voz) ;
  • “Varapau” como símbolo da masculinidade (mas também de violência) (a ponto de ter sido proibido na via pública, nas festas, nas romarias e nos bailes, sendo o seu cumprimento fiscalizado pela GNR):
  • a Venda, o estabelecimento comercial que era mercearia, tasca, casa de comidas (para os de fora), cabine pública de telefone, caixa de correio, palco de mexericos, boatos e notícias, etc. (a da Candoz, ficava no Alto,na estrada real Porto-Régua,   a 3 km de distância por caminho de carro de bois, que agora é estrada municipal e nos leva à albufeira da barragem do Carrapatelo); 
  • o Verde (ou Bazulaque) (é ou era um prato típico da Páscoa, na altura em que se matava o anho; feito com  colaça, o coração, o fígado e rins);.
  • a Vinha de bordadura e de enforcado (e na sua grande maioria, videiras de tinto… jaquê, um híbrido americano de  há muito proibido mas sempre tolerado; de fraca graduação e pior qualidade, o “jaquê” chegava a maio já era intragável; de resto, nas vindimas toda a uva podre ia “para o tinto”; e não havia vinho verde branco, o que se fazia era “para o padre”; e muito do que ia para o "ultramar", a tropa, que tinha poder de compra, era vinho branco leve, de 9 / 10 graus, enviado para os armazéns do Porto e de Vila Nova de Gaia, e depois gaseificado e rotulado como "vinho verde branco");
  • o Vinho verde branco, feito de bica aberta, e que era só para o padre e para a missa (hoje é um dos senhores "embaixadores de Portugal");
  • o Vinho verde tinto, o tal "berdinho", carrascão, bebido da malga de barro vidrado ou da “caneca de porcelana”;
  • a Virgindade (feminina) antes do casamento (e ai da rapariga que fosse "rejeitada" pelo rapaz...); ou tivesse a desgraça de ser "mãe solteira";
  • ... e quando a gente (a nossa geração) nasceu, por volta de 1945, no fim da II Guerra Mundial, ainda morriam 120 crianças em cada mil nados-vivos.

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Nota do editor LG:

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27293: Notas de leitura (1848): "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira, capelão, major ref - Parte IV: "Até 1966 eram todos voluntários" (Luís Graça)

 

A legenda e a foto são do padre Bártolo Paiva Pereira... Vêm na página 23 do livro que estamos a recensear. Podem surpreender o leitor, se tivermos em conta que o autor é capelão major reformado, serviu nas Forças Armadas durante 30 anos e tem pelo menos duas condecorações (ele, por modéstia, não o diz). 

Além disso, "não se trata da despedida de um Batalhão, mas de um contingente da PSP; o fardamento (nomeadamente os capacetes com a estrela de seis pontas do respetivo crachá) e a presença do Ministro do Interior, Santos Júnior na ponta direita da foto assim o indiciam"
 (A explicação é dada pelo nosso  camarada Eurico Dias, ex-alf mil, CCaç 4142/72, "Os Herdeiros de Gampará", Gampará, 1972/74).

Fonte: "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira (ed. de autor, Vila do Conde, 2025, pag. 23).


1. Não é seguramente o padre Bártolo Paiva Pereira que aparece na foto a benzer (com o hissope ou o asperge) o guião de mais um  batalhão que partia para Angola, ou melhor, de um contingente da PSP (Polícia de Segurança Pública). 

Não lhe façam essa maldade, a  ele que passou pelos 3 TO (Angola, 4 anos, Guiné, 2 anos, Moçambique, 4 anos), que foi capelão do Copcon e do Regimento de Comandos da Amadora, em 1975,  que demonstra grande estima, afeto e admiração pelo seus militares, e em especial pelos seus "comandos", enfim, alguém que, voluntariamente (!), passou a 1/3 da sua vida ao serviço da sua "família militar"...  Enfim, um homem e sacerdote que diz: "A minha Pátria é o Hélder" (o 1º cabo que ia à sua frente, e que morreu numa emboscada, em Cabinda, em 1962, na floresta do  Maiombe, e que terá salvo a vido seu "capelão") (*)

Não se consegue identificar a unidade que parte para Angola. Mas sabemos que não é do Exército, e um contingente da PSP. Pela legenda, terá sido  nos anos de 1961/62, portanto ainda no princípio da guerra. 

Ampliando a imagem, vê-se que o capelão da foto é já graduado em capitão. O Bártolo ainda era nessa data um alferes, com 26/27 anos (será graduado em tenente em 1963, capitão em 1965 e em major já em 1973; além disso, a sua experiência como capelão militar é no Exército.

A fotografia que encima o capº 2 ("Assistência Religiosa às Forças Armadas: Orgânica e Pressupostos" (pp. 23-44) merece uma legenda crítica por parte do autor do livro, o padre Bártolo Paiva Pereira, hoje major na situação de reforma:

  "A fotografia que abre este capítulo, é uma provocação " (sic) (pág. 23).

Uma "provocação" ?  Não, na época, mas à luz dos dias de hoje... O "aggiormanento" da Igreja Católica, mal começara. (O Concílio Vaticano II, vai de 11/10/1962, 1ª sessão, até 8/12/1965, 4ª e última sessão)... 

O que o autor pretende dizer é que os capelães não serviam (nem podiam servir) para "turiferar a guerra e as máquinas de guerra" (pág. 39)...  "Turiferar", diz o dicionário é  "queimar incenso em honra de; incensar" (em sentido figurado,  adular; lisonjear).

Este é um velho debate, entre a "corporação" e os historiadores, que ultrapassa o âmbito desta simples recensão. Segundo o autor, esta "cerimónia de despedida", esta encenação, centrada na figura do capelão, benzendo guiões e flâmulas, terá sido de "curtíssima duração" (sic) (pág. 23).

Não nos parece: visionámos vídeos antigos da RTP Arquivos (um de 1961 e outro de 1971): em ambos ainda vamos encontrar o capelão perfeitamente integrado na cerimónia de despedida, munido da sua "caldeirinha de água benta" e do "hissope" (ou asperge):
(vídeo 2' 17'')  (sem som)

"Vila Nova de Gaia, Serra do Pilar, contingente militar do Regimento de Artilharia Pesada Nº 2 (RAP 2) recebe a bênção e guião durante a cerimónia de despedida, a propósito da sua partida em missão de serviço para o Ultramar".
(vídeo 2' 44'') (sem som)

"Vila Nova de Gaia, Serra do Pilar, contingente militar do Regimento de Artilharia Pesada Nº 2 (RAP 2) recebe a bênção, guiões e flâmulas durante a cerimónia de despedida, a propósito da sua partida em missão de soberania para o Ultramar".

No espaço de 10 anos a cerimónia não mudou, pelo menos na Serra do Pilar, no RAP2: os militares já não usam é capacetes de aço... mas o capelão não dispensa a caldeirinha da água benta e o hissope...

Fica-se com a ideia de que o autor, enquanto capelão, perdeu um pouco o contacto com o "terreno", ao  passar, na Guiné, em 1965/67,  a chefiar o serviço religioso, a trabalhar no QG/CTIG ou a viver  no  "Vaticano" (o edifício ou moradia onde estava instalado o capelão-chefe, em Bissau), longe dos quartéis do mato). (Curiosamente, ainda não descobrimos a localização do "Vaticano", na Bissau Velha.)

Neste 2º capítulo faz-se também o "historial" da capelania militar, desde a I Grande Guerra. Dispensamo-nos de entrar aqui em grandes detalhes. Mas recomendamos a sua leitura a quem quiser saber mais sobre o tema.



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 > 1941 > O primeiro Natal passado na ilha. Foto: arquivo de Luís Henriques (1920-2012) / Luís Graça (202o)


Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Também houve (e muitos, algumas dezenas de milhares de) expedicionários na II Guerra Mundial. Alguns dos nossos pais estiveram em Cabo Verde, outros nos Açores, ou na Madeira, quiçá em Angola e Moçambique.

Estranhas-se,  por isso, que, no auge da "glória" do Estado Novo, no princípio dos anos 40, não houvesse capelões militares,  ou pelo menos um embrião de serviço de assistência religiosa aos nossos militares, destacados em missão de soberania para as ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Cabo Verde) bem  para outras partes do império (nomeadamente Angola e Moçambique). Diz o autor:

"Portual não entrou na 2ª guerra mundial (1939-145). Por isso, não houve capelães destacados para esse conflito mundial" (pág. 24)...

Não é bem assim, estimado padre Bártolo, está a esquecer-se do caso de Timor onde, numa lista dos cerca de uma centena de portugueses mortos durante a ocupação japonesa (1942-1945),  há pelo menos quatro padres católicos:
  • Padre António Manuel Pires, missionário (assassinado em Ainaro, a 2 de outubro de 1942);
  • Padre Norberto de Oliveira Barros, missionário (idem);
  • Padre Abílio Caldas. missionário, natural de Timor (assassinado em Barique, em data ignorada):
  • Padre Francisco Madeira, issionário (foragido, morto no mato, na região de Lacluta, em data ignorada).
E de entre os mais de 40 mil timorenses que se estima terem morrido (ou sido mortos), durante a ocupação japonesa, muitos seguramente seriam católicos ou cristãos.

Ficamos a saber, isso sim, é que "só em 29 de maio de 1966 foi erigida canonicamente a Diocese Castrense", por acordo entre a Santa Sé  e o Governo de Portugal (pág. 24), sendo essa data a da "oficialização" do serviço  de assistência religiosa nas Forças Armadas, cinco anos e tal depois do início da guerra em Angola. 

O primeiro bispo castrensne seria o próprio Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira. E só no ano seguinte, 1967, se realizou o 1º curso  de capelães.

Isto quer dizer que até então todos os capelães militares eram voluntários, foi o caso do padre Bártolo.

(...) "De início os capelães eram mobilizados na base do voluntariado. Aconteceu comigo e com muitos outros. 

As Forças Armadas pediam à Igreja um sacerdote para enquadrar os seus batalhões. E a Igreja arquitetou um plano militarmente bizarro, pastoralmente muito acertado. (...) 

A Igreja nunca concedeu padres ao Estado, apenas os emprestava por um período de vinte anos, ou até se alcançar o poste de major. Findo esse tempo, voltavam à diocese. A imposição aparece com o primeiro Curso Oficial de Capelães, em 1967 (...) (pág. 52, negritos do autor).

E parece que essa medida eclesiástica não foi de todo pacífica:

(...) "Começa a obrigatoriedade  da mobilização. Começa o conflito eclesiástico. Começa o sarilho  da relação de muitos padres com os seus superiores religiosos, Começa o choro da  consciência  de alguns reverendos que não desejavam  exercer a pastoral castrense  em clima de guerra" (pág, 52)...

Temos no nosso blogue várias histórias desse conflito, que começa por ser um conflito de consciência... 

O padre Bártolo também refere e analisa o caso de vários antigos capelães, três dos quais mais polémicos, o meu  primo Horácio Fernandes, o Padre Mário de Oliveira (ou Mário da Lixa) e o Arsénio Puim... Todos eles membros da nossa Tabanca Grande. O Mário da Lixa, já falecido, infelizmente. Os outros dois acabaram por pedir a "redução ao estado laical", um tabu antes do Concílio Vaticano II. (**)

 (Continua)
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Notas do editor LG:

(*) Vd. postes anteriores da série:




(**) Poste anterior da série > 29 de setembro de 2025 > 7 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27291: Notas de leitura (1847): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte II: "Ó Beatle, queres mesmo ir para a Guiné ?", perguntou-lhe o antigo patrão, o sr. António Muchaxo... (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P27291: Notas de leitura (1847): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte II: "Ó Beatle, queres mesmo ir para a Guiné ?", perguntou-lhe o antigo patrão, o sr. António Muchaxo... (Luís Graça)


Cascais _ Praia do Guincho > Restaurante Muchaxo> c. finaisw dos anos 50 > Foto da página do Facebook da Real Vila de Cascais (com a devida vénia...)




Luís da Cruz Ferreira (n. 1950, Benedita, Alcobaça)


1. Estamos a ler este livrinho, de 184 pp., edição de autor (2ª ed. revista e aumentada), e que foi expressamente publicado para comemorar, em 2/8/2024,  os 50 anos do regresso da 2ª C/BART 6521/72 (Có, 1972/74). 

Chegou-me às mãos, por intermédio do Joaquim Pinto de Carvalho, que também fez a revisão/fixação de texto, e é amigo do autor.

Conheceram-se na Guiné, o Luís e o Joaquim. Já pedi ao Pinto Carvalho para o convidar a integrar as nossas "fileiras" (*).

O Luís da Cruz Ferreira é natural da Benedita, Alcobaça. De alcunha o "Beatle", quando jovem, profissionalmente sempre esteve ligado à restauração, tendo trabalhado em diversos estabelecimentos conhecidos da Linha, e nomeadamente em Cascais: Muchaxo (Guincho), Casa Tirano (Alcabideche), Boca do Inferno (Cascais), Veleiro (Carcavelos), até criar o seu próprio negócio, o conhecido café Pão de Lis, Rua de Alvide, 89,  Fontaínhas, Cascais.

Na tropa e na guerra, foi 1º cabo aux enf, tendo sido mobilizado para o CTIG, integrado na 2ª C /BART 6521/72 (Có 1972/74). O batalhão estava sediado no Pelundo. Também foram dos últimos soldados do Império, tendo regressado a casa já em agosto de 1974. 

Além de enfermeiro, este "Có Boy" também foi "barman" e depois professor no Posto Escolar Militar nº 20, em Có.

São estas "peripécias" da sua vida que ele nos conta. Mas este livro é apenas um capítulo da autobiografia que está a escrever. Há anos. E que um dia há de ser publicada. 

Para já devemos estar-lhe gratos pela partilha, em livro (ISBN 978-989 -33.7982-0), das suas memórias deste período da sua vida, que coincide também com a de muitos de nós.

Nesta segunda nota de leitura (*), vamos acompanhar o autor desde a sua entrada para a tropa, com o início da recruta em outubro de 1971,  até à partida para o CTIG, em setembro de 1972, 11 meses depois.  Corresponde às páginas de 7 a 45:

  • Serviço militar obrigatório, RI 7, Leiria  (pp. 7/18)
  • Coimbra: Regimento do Serviço de Saúde (pp. 18/27)
  • Hospital Militar Principal (pp. 27/34)
  • Penafiel: formação do BART 6521/72 e partida para o CTIG  (pp. 34/45)

O Luís fez a recruta no RI7, em Leiria.  Era natural a sua ansiedade antes de entrar para aquela sua "nova vida". Todos passámos por isso. Mas, para ele,  não  era totalmente estranha. Três irmãos já tinham ido á tropa (e depois ao "ultramar"), com tudo o que isso representava, em termos de sacrifícios, nomeadamente para uma família pobre. Um esteve na Guiné, e outros dois em Angola. (Em famílias numerosas,  não era assim tão incomum haver 3, 4, ou até 5 e 6 filhos chamados para a tropa e mobilizados para um guerra que se arrastou de 1961 a 1974;  a família Magra é o exemplo mais conhecido.)

Mais de 50 anos depois é notável a forma como ele reconstitui com pormenor,  rigor e espírito crítico, esses onze meses de preparação para a guerra no ultramar. 

Nunca lhe passou pela cabeça ser refratário (e muito menos desertor). Mas aponta o dedo ao regime de então que obrigou toda uma geração a um tremendo sacrifício, sem contrapartidas:

"Só em ditadura se aceita a obrigatoriedade de cumprir, em média, três anos de serviço militar obrigatório, nas condições em que os mancebos o faziam" (pág. 13)...

(...) "Não tinha vontade de vestir a farda, de me sujeitar  aos maus-tratos, injustificados,  de pessoas mal preparadas para comandar e dar ordens " (pág. 7). 

No entanto,  "a (minha) obrigação para com o meu país era superior a toda essa grande mágoa" (pág. 8). 

Sabia, apesar de crítico em relação à ditadura que rejeitava, que "teria de ir à guerra (...) para poder viver em paz" (pág. 10). E, tal como acontecera aos seus três irmãos, tinha a certeza íntima que voltaria com vida e saúde.

Claro que havia a "cunha"... O factor C era, já era, sempre fora, uma "instituição" neste pequeno país clientelar. 

E, pior, em ditadura:  "Os ditadores também amigos" (pág.8), falsos ou verdadeiros: "Há quem os aprecie por conveniência, e quem os aplauda por ignorância" (...). Nunca fora tão verdadeiro o provérbio popular: "quem não tem padrinho morre novo" (pág. 8).

E a propósito, há um episódio delicioso (e edificante) que o autor nos  conta, e que se passou  quando ele se foi despedir dos antigos colegas do Restaurante-Estalagem Muchaxo, na famosa Praia do Guincho, Cascais (hoje Estalagem  Muchaxo Hotel, e cuja história remonta a 1944) (**)

(...) Neste interim (...), sou abordado pelo senhor  António Miguel Muchaxo ("o Pai Muchaxo" (...), que foi meu patrão, pai dos senhores Tony  e Miguel Muchaxo;
 
 −  Ó Beatle, queres mesmo ir para a Guiné ?!   −  perguntou-me  o senhor António Muchaxo.

Fiquei estupefacto com a pergunta que pressupus ser uma proposta de salvação da ida para a guerra.  Não sei se o mesmo já houvera feito semelhante proposta aos colegas que me antecederam nas mobilizações  anteriores (...).  

Se a mesma pergunta me tivesse sido formulada por qualquer outra pessoa que não o 'Senhor Muchaxo, pessoa que duas, três ou quatro vezes por semana recebia, na qualidade de anfitrião, o presidente da república e era também muito próximo dos presidentes do conselho de ministros  e de todos os ministros e outros que tais, eu diria logo que não queria ir para a Guiné, mas que gostaria de  terminar o meu serviço militar obrigatório, preferencialmente em Cascais.

Não fui capaz de responder, nesse momento" (...) (pág. 30).

E porquê ? O Luís ficou prisioneiro de um dilema moral: por um lado, era um dos funcionários da casa mais críticos (o que "mais ousava questionar os patrões"), mas também era um dos que vestia a camisola, e defendia aquela casa, considerando-a também sua "casa"  (...) "onde morava, trabalhava, estudava" e onde passara  alguns dos melhores tempos da sua juventude, "por escolha própria e por deferência do 'patrão' Tony Muchaxo".

(...) "Não demorei muito tempo a responder ao 'sr. Muchaxo'. Na verdade, eu não tinha nenhum interesse em ir para a guerra da Guiné. (...)  Contudo, a dívida de que ficaria suspenso todo o meu futuro,  era um hipoteca que jamais conseguiria resgatar. Não sou ingrato nem cuspo no prato onde comi!" (...) (pág. 31).

Ou seja, ao aceitar uma eventual cunha do sr. Muchaxo, para se safar da Guiné (ou, do mal o menos, para  ficar no "bem-bom" de Bissau...onde poderia fazer uns "extras" e ganhar mais algum "patacão" na restauração), ele  tinha consciência de que nunca não voltaria a ser o mesmo "Beatle"... Havia aqui uma questão de dignidade e de coerência. 

E lembra situações que ocorriam na época  ( ou pelo menos, eram faladas á  boca cheia nos quartéis):  gente com dinheiro que pagava a outros para irem por eles para o ultramar, a troco de pequenas fortunas...

Mas voltemos atrás, ao RI 7, Leiria. Ao Luís, trabalhador-estudante, faltavam-lhe três disciplinas para concluir o segundo ciclo dos liceus que lhe daria acesso ao CMS (Curso de Sargentos Milicianos).

  Tinha esperança de que,  em 1500 recrutas, ele acabasse por ser "repescado" para o CSM. Parece que havia 350 vagas (menos de 1/4).

O que é um dado revelador: em finais de 1971, havia já um défice sargentos e oficiais milicianos, tal como já havia de comandantes operacionais (alferes e capitães)... Daí o CMS ir 'pescar" gente ao continente geral; e o COM  "repescar" malta ao CSM.

A sua "primeira grande desilusão" da vida militar foi quando, em formatura, na parada, ouviu os nomes dos "sortudos", selecionados para frequentar o CSM. O seu nome não constava. Dos seus amigos, os que entraram todos tiveram "cunha". 

(...) "Recolhi às escadas de acesso ao 1º andar  onde se encontrava a minha camarata e chorei muito, para dentro de mim" (pp, 14/15). 

Acabou por ir tirar a especialidade de enfermeiro, em janeiro de 1972, no Regimento de Serviços de Saúde (RSS), em Coimbra (pp. 18/27), e passar pelo HM Principal (pp. 27/34), antes de ir formar batalhão em Penafiel (pp. 34/45).

As suas observações críticas  (mesmo que anedóticas"...) sobre o quotidiano da tropa naquela época merecem, só por si, uma nota de leitura à parte.

Continua)

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 A empresa proprietária é Muchaxo & Filhos, Lda, fundada em setembro de 1944.  

Em maio de 1945, foi inaugurado um pequeno restaurante/bar de praia chamado “A Barraca”, sobre a praia do Guincho, uma estrutura simples, de madeira, sem água corrente nem eletricidade,  inicialmente em chão de areia.

Com o crescimento do estabelecimento e da reputação, o empreendimento foi ampliado. O pai do "Tony",  o António Muchaxo (1900-1984) comprou uma fortaleza do século XVII (a Bateria da Galé) e construiu sobre ela o restaurante-estalagem. Manteve as muralhas.

Em 1964 foi feita a inauguração formal da Estalagem Muchaxo, com 17 quartos, restaurante e bar. Presença,  obrigatória, a do Presidente da República, o alm Américo Tomás, que foi cortar a fita.

Mais tarde, ao longo das décadas seguintes, o espaço foi sendo ampliado (nos anos 1990, por exemplo) para chegar aos mais de 60 quartos que tem hoje. Em 2011, passou a designar-se oficialmente Estalagem Muchaxo Hotel, com categoria de 4 estrelas, hoje "um ícone do turismo nacional".

O Muchaxo tornou-se, especialmente nas décadas de 50, 60 e 70, um ponto de encontro da elite portuguesa, incluindo membros do regime do Estado Novo, diplomatas, aristocracia exilada, personalidades do cinema, reis e chefes de Estado estrangeiros. Por exemplo, foi lá que se realizou o jantar de noivado de Juan Carlos da Espanha com a infanta Sofia da Grécia em 1962. Também foi lá realizada a boda do casamento do antigo presidente da República António Ramalho Eanes com a dra Maria Manuela Eanes.

"Tony" Muchacho, que fez tropa em Mafra, em meados dos anos cinquenta, é formado em economia e  tem amigos em todo o mundo, é considerado um "embaixador de Portugal". 




Cascais > Estrada do Guincho > Restaurante Oitavos > 20 de novembro de 2014 >  XVII Almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, o almoço (antecipado) de Natal. Reuniu 55 convivas, o dobro do habitual naquele tempo. Sem publicidade, sem alardes. O petisco foi o consagrado e aclamado arroz de marisco da casa (Restaurante e Casa de Chá,  "Oitavos").

A Tabanca da Linha reunia-se nesta altura neste restaurante (e casa de chá), na Guia, estrada do Guincho, que pertencia (e pertence)  à empresa Muchaxo e Filhos, Lda, dona do Restaurante-Estalagem Muchaxo. 

O nosso saudoso Jorge Rosales, régulo da Tabanca da inha e figura muito popular em Cascais / Estoril, era amigo  do "Tony" Muchacho. As duas famílias, os Rosales e os Muchaxos, eram de origem galega, segundo creio (a do Rosales, de Pontevedra).