Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Iemberém > Dezembro de 2009 > O Dr. João Graça, médico e músico, ofereceu cinco dias (de 6 a 10 de Dezembro de 2009) das suas férias de quinze dias (de 5 a 19 do corrente), para trabalhar como médico no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém. Para além de Bissau e do Cantanhez, esteve também nos Bijagós, na zona leste (Bambadinca, Tabató, Bafatá, Contuboel e Gabu) e na região do Cacheu (São Domingos)
Aceitou, no regresso, integrar a nossa Tabanca Grande e a publicar alguns apontamentos e fotos do seu diário de viagem.
Espantosa, a primeira foto de cima, em que o menino de Iemberém, a aprender a gramática da vida, como que nos interpela, a todos, não só os pais-fundadores e os homens grandes da Guiné-Bissau mas também todos nós, portugueses, europeus e cidadãos do mundo... "Que lugar há para mim neste mundo que devia ser meu e teu, o nosso mundo, o único lugar que temos para nascer, crescer, viver e morrer com saúde, em liberdade, com dignidade, em paz ?"
Fotos (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
A gramática da vida
Ao João, que hoje faz anos
Contra o ponto (.) a vírgula (,)
Contra o ponto de exclamação (!) as reticências (…)
CONTRA OS TíTULOS DE CAIXA ALTA,
o ponto de interrogação (?).
Ou então abram alas, malta,
parênteses, curvos ( ) ou rectos [ ],
e parem só aos sinais de proibição.
... Por precaução.
E ao Não!, digam Não!, ponto de exclamação (!).
E aqui carreguem nos sinais de interjeição:
Ai! ei! ii! oi! ui!...
... Que, com a vida sem pica, a gente fica
sem palavras nem (lo)comoção!
Ao sinal verde, toca a arrancar e a marchar
contra os OOO da arrogância,
os UUU da flatulência,
os III da intolerância,
os EEE da estupidez,
os AAA da bravata e os RRR do arroto,
mais os ÇÇÇ do caraças da doença,
e, pior, os acen(t)os da demência.
Cuidado, ao final das escadas,
â direita,
o cano de esgoto,
não escorregar em contramão.
... Não há receita contra as gralhas e as calinadas,
e os atropelos à decência.
War is over, baby,
bela bajuda de mama firme,
tira fora o chapéu de abas largas
e atira flores aos que morreram,
em terra, no ar e no mar,
pelas causas que não têm deferimento.
... Não os deixes inumar
na vala comum do esquecimento!
Cuidado, camarada,músico do mundo,
trânsfuga, refractário, desertor,
prisioneiro, inimigo, comissário,
capelão, comandante, detrator,
miliciano, agente duplo, lavadeira,
escriturário, artilheiro, piloto,
grumete, xico, cadete, capitão,
crente ou ateu, tanto faz,
e olha o robô,
que, no fim da picada, podes ser cuspido, zás!,
pela força centrífuga do silvo da cobra cuspideira
que se mordeu a si própria.
... Mas, a sério, ninguém se magoou ?
Quanto ao macaréu, já não é o que era,
garantiram-te no Xime...
Deixaram assorear o Geba Estreito,
que crime!,
os administradores das águas fluviais
braços de mar, tarrafes e canais de irrigação
da liberdade criativa.
... Dizer que o trabalho é bom p'ró preto
já não é politicamente correcto. Corta.
Mas que importa,
se já nem vocês se afoitam, pessoal,
de peito feito, aberto,
contra os jagudis imperiais do Corubal
que comeram as últimas letras do alfabeto.
... Morreram todos, os cabras-machos!
Para que serve afinal a liberdade sem a poesia nem a "bianda" ?
Há que pôr os pontos nos ii,
no semáforo intermitente,
engraxar as botas,
brunir os colarinhos,
escovar o camuflado,
serrar fileiras e os dentes,
pensar na puta da vida,
e no povo, agora, murcho, calado e tolo,
e abrir aspas entre as falas em crioulo.
... Enquanto o corpo está quente e o sangue sai às golfadas.
Até o barqueiro, coitado, perdeu o k da kanoa,
varada no tarrafo do Mato Cao.
Sem o til.
... Levaram-no, ao pobre do til, para o canil de Lisboa.
Há agora um fantasma de um quarteleiro
à procura das estrias, frias, do morteiro...
Triste samurai, aquele, que não encontra o fio nu da espada,
E em vão procura o historiador o rumo da história.
... E, ai! do pobre (a)tirador,
aquele que se mata a (a)tirar
o acento circunflexo da bala na câmara.
Encontraste um 'djubi', numa escola do mato,
exercitando o seu estilo caligráfico,
em caderno de duas linhas,
de acordo com a norma do acordo pouco ortográfico.
... Oxalá, Insh'Allah, Enxalé!
Resta o humorista, o velhaco,
que é sempre o último a perder
os quatros humores,
já no fundo da pista onde acabam todas as peugadas:
sangue, pouco e fraco, diz o o doutor,
fleuma, de mal a piores,
bílis amarela, quanto baste,
e bílis negra, às carradas.
... Que o último a morrer,
nem sempre é o que morre melhor.
Que o que faz bem ao braço, faz mal ao baço
e já não há coração que aguente
a pressão hiperbárica do pulmão.
O fígado, esse, mesmo de aço e de inox,
é um passador crivado....
... De balas sem ética nem estética, diz o raio X.
Não sabes o que é que faz mais urticária,
ao tabanqueiro viril, que não arreda pé,
se a inveja do pobre em hidratos de carbono
ou a pesporrência do rico em sais minerais.
Resta a cruz de guerra
da guerra de mil e troca o passo, na Guiné,
e os seus heróis.
... Todos diferentes, todos iguais.
Quanto à vida, baby,
no fundo, é tudo tretas:
sangue, suor e lágrimas...
é quando se tem 20 anos,
força nas canetas,
e muito esperma para dar e vencer.
Agora já se não usam palavras com trema.
... Nem tu sabes o que fazer com este poema.
De qualquer modo,
quando a gente morrer,
que não seja por falta de imaginação,
ou de habit(u)ação,
ou de fim do prazo de validade,
que seja ao menos numa cama fofa,
de consoantes e vogais.
Sem travessão. E com piedade.
...E mais:
dispensemos a notícia nos jornais.
Luís Graça
© 2008 | Revisto em 21/1/2025
____________