– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.
E eu para o cozinheiro Teixeirinha:
– Quanto tempo esteve de molho?
– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que, na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.
– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…
Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.
Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:
– Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu É macho! É macho!
– Eu não te tinha dito?!
A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido.
– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!
E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:
– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!
Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem "Antepassados"… (*)
Jorge Cabral
Lisboa, 7/12/2016 (Revisão / fixação de texto, título: LG)
Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O texto (e o contexto) partilhado é uma memória vívida e comovente de um Natal passado em Missirá, no ano de 1970, durante a guerra colonial na Guiné. É uma narrativa curtíssima, mas rica em detalhes, humor e humanidade. Em dois parágrafos e meia dúzia de diálogos , o autor cria uma atmosfera natalíica, de densidade humana e literária raríssima.
O nosso amigo e camarada Jorge Cabral, falecido precocemente, é escritor de primeira água. N o futuro merecerá figurar em qualquer antologia do conto sobre a temática da guerra colonial.
Cenário: a ceia de Natal aconteceu numa mesa "engordurada, sem toalha", no destacamento de Missirá. O narrador (o alferes) e os seus camaradas, metropolitanos, "tugas" (Branquinho, Amaral, Teixeirinha) reuniram-se para o que deveria ser um jantar especial. No Natal, em Portugal, come-se bacalhau, com batatas e "pencas" (no Norte). É uma data festiva. A maior do ano.
Incidente: o prato principal era bacalhau com batatas (supremo luxo, naquelas paragens). No entanto, quando começaram a comer, o Branquinho notou que o bacalhau "sabia a sabão".
Explicação: o cozinheiro, Teixeirinha, confessou que se tinha esquecido do tempo de demolha e que o soldado Pechincha lhe dissera que, na terra dele, costumavam "lavá-lo com sabão" para ficar bom.
Punição: o Alferes, numa mistura de frustração e espírito natalício, mandou o Teixeirinha, como castigo, ir à cantina buscar cervejas para todos, a pagar a meias com o Pechincha.
Ceia final: a ceia resumiu-se a batatas, latas de conserva e cerveja morna (pois o frigorífico tinha avariado na semana anterior).
Notícia: meia hora após a ceia, o soldado Alfa Baldé, que já tinha três filhas e duas mulheres, e recentemente trouxera uma nova esposa, adotada por levirato (**), mais a bisavó idosa, Maimuna, irrompe, a gritar de alegria: "Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu! É macho! É macho!"
Batismo proposto: o Alferes, num gesto de afeto e ironia, sugeriu que o bebé se chamasse Jesus, mas o Alfa Baldé, fula e muçulmano, já tinha nome para a criança: seria Braima (na língua fula, é uma variação do nome árabe Ibrahim, o equivalente a Abraão em português).
Visita: o "alfero Cabral", mais os furriéis Branquinho e Amaral, foram ver o recém-nascido.
Momento mágico: ao entrarem, o Amaral, que estava "um pouco tocado" (pela cerveja, mesmo "choca"), proclamou: "Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!"
Conclusão: o narrador reflete sobre o tempo que passou (46 anos, de 1970 a 2016) e sobre a inevitabilidade da velhice.
(iv) A memória selectiva e o Natal como exceção:
O texto começa com uma afirmação fundamental: “Poucos são os Natais de que me lembro.”
A memória aqui não é cronológica, é afetiva. Entre dezenas de anos e vários Natais, só um se fixa, o de Missirá, 1970. O Natal surge como ritual deslocado, arrancado do seu cenário simbólico europeu e transplantado para o mato guineense. É um Natal “possível”, não ideal.
(v) O bacalhau: símbolo nacional convertido em farsa
O bacalhau, pilar do Natal português, obrigatório à mesa nesse dia mágico, aparece ensaboado, literalmente contaminado pelo erro, pela improvisação, pelo desenrascanço, pela santa ignorância ( bem-intencionada, apesar de tudo).
O episódio é magistral porque:
-
subverte o sagrado produto gastronómico nacional (que é o bacalhau);
-
introduz o humor de caserna (o castigo não é a "prisão", é cerveja, paga a meias pelo desastrado cozinheiro Teixeirinhz e o "chico-esperto" do soldado Pechincha):
-
revela a cadeia de mal-entendidos culturais (o Pechincha, a tradição “da terra dele”, a de ensaboiar o bacalhau em vez de o demolhar em várias águas e vários dias).
Aqui, o riso nasce do choque entre vários mundos, mas nunca há desprezo, humilhação, apenas risota, humanidade.
(vi) A autoridade do “Alfero”: justa, teatral, cúmplice
O narrador constrói a figura do alferes Cabral como:
-
autoridade funcional;
-
figura quase teatral:
-
mediador cultural.
O castigo é simbólico e coletivo. Não humilha, integra. Isto revela o comando humanizado, típico de quem percebe que naquela guerra ninguém está “inteiro” e tem "toda a razão".
(vii) O nascimento: epifania no meio do caos
O nascimento do filho do soldado guineense Alfa Baldé é o centro simbólico do conto. É um Natal sem presépio formal, sem luzes, sem enfeites, sem artifícios;
-
um parto real, no mato, natural, sem parteira (como terá sido o de Jesus na gruta de Belém);
-
um menino que nasce enquanto outros matam ou morrem;
um menino que tem de ser "Braima"... e não o "Jesus" dos cristãos ou o "Alfero Cabral", comandante daquela tropa matrapilha.
A figura da Maimuna / “Antepassada” é absolutamente extraordinária:
-
guardiã do tempo;
-
elo entre gerações;
-
quase uma personagem mítica
O sorriso com um único dente é um recurso literário de enorme economia e força.
(viii) Os Três Reis Magos: embriaguez, teatro e revelação
Quando o Amaral diz: “Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!”
o microconto atinge o seu auge. Aqui acontece tudo ao mesmo tempo:
-
o Natal cristão é reencenado de forma profana e ecuménica;
Jesus é um menino pretinho:
-
a guerra transforma-se em farsa absurda;
-
os soldados são atores improvisados num palco de todo improvável.
É o teatro do absurdo em plena guerra, com a gente gosta de dizer das "estórias cabralianas" (de que o "alfero Cabral" publicou, no nosso blogue, mais de 9 dezenas).
(ix) O tempo final: melancolia sem sentimentalismo
O último parágrafo é devastador na sua contenção: “Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…”. Aliás, cinco anos depois, morreria o narrador, e em 2023 o Branquinho. O Teixeirinha e o Pechincha não sabemos se são nomes reais.
Sem lamento, sem retórica. Apenas o tempo. A guerra passou, mas deixou corpos gastos e memórias resistentes, como a de todos nós.
A comparação final com a Maimuna fecha o círculo: todos acabamos “antepassados”. Todos seremos amanhã antepassados, quando os nossos filhos e netos se lembrarem de nós, se um dia forem à Guiné, em viagem de turismo: "Os nossos antepassados, que andaram por estes matos, rios e bolanhas..."
(x) Conclusão
Este microconto é um ato de resistência pela memória, um riso contra a desumanização, uma homenagem implícita aos soldados anónimos que combateram naquela guerra absurda, um Natal sem redenção, mas com dignidade e humanidade.
O Jorge Cabral escrevia como alguém queria sobreviver contando histórias. e isso é talvez a forma mais honesta de literatura de guerra. N a realidade, eu sempre o oconheci como o mais "paisano" dos combatentes. Ele que era filho de militares e foi até "menino da Luz", seguramente contra a sua vontade.

________________
Notas do editor LG:
(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"
(**) Levirato: o costume, observado entre alguns povos, nomeadamente semitas, que obriga um homem a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo Testamento como uma das leis de Moisés. O vocábulo deriva da palavra "levir", que em latim significa "cunhado". Fonte: Wikipedia.










































